quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Conflito

Digitava sem parar. Porém, as palavras pareciam sem sentido algum. Naquele momento representavam apenas uma junção confusa de letras.

Socou a mesa e levantou-se. Dirigiu-se à cozinha, em busca de algo para molhar a garganta e que talvez lhe desse alguma inspiração. Com uma garrafa de vinho na mão, andou até a janela e debruçou-se no parapeito, observando luzes e vivências. Um cheiro fresco penetrou em seu ser, juntamente com o barulho das vibrações da cidade. A escuridão repleta de focos de existência lhe trazia serenidade. Cogitou o que é um sentido e supôs que a essência depende do observador.

Sentou-se novamente e focou a tela do computador. Nada. Aquilo era pobre e incerto. Queria vomitar melancolias e alegrias, mas o prazo para entregar a reportagem sobre a má qualidade dos transportes públicos de São Paulo não permitia que seus anseios fossem atendidos. Estava sufocado em seu pequeno mundo de cronogramas, horários, tarefas, contas e dúvidas sobre o significado das relações com as pessoas de seu cotidiano. Concluiu que seu trabalho, teoricamente, era passar ao mundo dados úteis e fatos coerentes. No entanto, na verdade, o produto final era a opinião de uma empresa da informação. Questionou a definição de útil. Sua cabeça latejava.

Chutou a cadeira e entornou um grande gole de vinho. Miles Davis gritava com seu trompete no toca discos. O jovem escritor desligou o som, pegou as chaves de casa e saiu para as ruas. Queria respirar, queria fugir. O mundo corria atrás dele.

Seu andar ávido era sinal de que procurava algo. Sim, ele procurava sua origem. Essa palavra martelava seus pensamentos. Indagava a origem de tudo que passava pela sua mente: Crenças, costumes, amizades, relacionamentos, idéias. Estava obcecado com aquilo.

Tomou o metrô em direção a estação Anhangabaú. Chegando nas ruas repletas de botecos, luzes amareladas, escuridão, sons da movimentação e prédios de fachada gasta, andarilhou até a escadaria do Teatro Municipal e lá sentou-se, sempre com a garrafa na mão.

Minutos. "O que é tempo? É sucessão? Sim, só pode ser isso..."

Mais alguns goles. Os postes pareciam dançar em sua súbita pane mental. Ziguezagueando, dirigiu-se ao Café Girondino. Sentou-se e pediu uma cerveja. Alguns minutos depois do primeiro gole, seu camarada Simplício entrou e o avistou. Simplício fazia parte de um trio de música instrumental que rodava pelos clubes "cool" da cidade.

-Bodhisatva, como anda a escrita? - perguntou o músico.

-Na crista das sensações do real. - respondeu Cervello (este era seu sobrenome de família). -Gostaria de abrir uma gaveta repleta de palavras novas para escrever tudo que desejo.

-É por isso que me comunico pelas notas, meu caro amigo. Elas permitem tudo. - disse Simplício. -Garçom! Uma cerveja!

As vozes exaltadas dos indivíduos recém saídos do expediente ecoavam pelo Café, enquanto que garçons circulavam incessantemente pelos espaços entre as mesas.

Os dois camaradas discutiam Sartre:

-Experiência é essência? - perguntou Cervello. -Queria entender o que realmente se passava na cabeça deste parisiense.

-Libertação pela arte, jovem. E tenho dito! - respondeu Simplício.

-Hemingway é quem sabia das coisas. Brutalidade e violência são os marcos da história da humanidade.

-Caralho cara, não sei. O que sei é que o filho da puta escrevia demais. E era mulherengo e bebia o tempo todo. Viva o álcool! - Após essa frase, o músico entornou o último gole de sua cerveja.

Pagaram a conta e saíram pela noite para explorar o ar da cidade. O fluxo das coisas parece diferente quando se conversa caminhando.

Cruzaram o vale do Anhangabaú e subiram até o Viaduto do Chá. Dirigiram-se ao café do Centro Cultural Banco do Brasil e lá se alojaram.

Debateram pormenores e futilidades. Afinal, o que é o ordinário além de preocupações e tentativas de superá-las? Como de costume, não chegaram a conclusão nenhuma, a não ser a exclamação de alguns palavrões.

-Kerouac disse que a vida é como uma trilha. Andamos, suamos e sofremos para chegar em algum lugar. Quando atingimos o objetivo, aproveitamos intensamente as sensações que ele proporciona, mas logo temos que caminhar novamente para chegarmos em outro lugar ou simplesmente voltarmos ao ponto de partida. - disse Cervello.

-Isso é lindo, cara! É absurdo! O cara simplesmente saiu por aí, sem mais nem menos. Mochila nas costas e pronto. - respondeu Simplício.

Saíram do café para mais uma volta pela noite. Andavam lado a lado, passadas similares. Cervello fundia a cabeça com questionamentos e preocupações, enquanto Simplício focava os rostos das pessoas, a música da cidade e a leveza do ar.

-Estou preocupado. - disse o escritor. -Tenho que entregar uma matéria amanhã. Além do mais, esse trabalho de merda não me dá tempo para pensar no meu livro.

-O seu problema é que você pensa demais! - respondeu seu camarada. -Desencana, porra!!! Vamos sair por aí e encher a cara. - completou.

Andarilharam pelo centro. Entraram em um mercadinho e compraram uma garrafa de vinho. Enquanto procuravam um clube para dançar com algumas mulheres, bebiam e falavam sem parar.

Depois de passarem pela Praça Roosevelt, subiram boa parte da Rua Augusta a pé até encontrarem o Clube Sarajevo.

Entraram e tomaram algumas cervejas. Na pista, tocava um soul com batida eletrônica, que os animou. Completamente bêbados, dançaram abraçados no meio de todas as pessoas. Sensações: felicidade extrema e a vivência eufórica do momento se mesclavam com preocupações e racionalizações.

Cervello sentou-se no banco do bar, enquanto Simplício cortejava uma bela morena que também dançava. O músico falava naturalmente, agradando a moça. Nesse meio tempo, o escritor criava coragem para falar com a amiga da moça. Raciocinava e delimitava tudo que teria que falar.

Alguns minutos depois, Simplício veio de encontro ao amigo:

-Cara, estou indo nessa. Esta bela morena quer aprofundar a conversa em um lugar mais calmo. A amiga dela vai ficar por aí mais um tempo. Aproveite! Você está bem para voltar para casa depois?

-Tranquilo, rapaz. Vá. Daqui um tempo, quando eu estiver mais sóbrio, voltarei para casa. -respondeu Cervello.

-Beleza, cara. Divirta-se e até mais.

Abraçaram-se e Simplício abandonou a casa noturna.

Incapaz de criar coragem para falar com a amiga da moça, Cervello virou uma bela dose de vodka e voltou para casa. No caminho, lamentava sua falta de iniciativa.

Chegando em casa, deitou-se e dormiu profundamente. Na manhã seguinte, uma ressaca intensa o dominava. Mais uma vez encontrava-se dividido: uma parte sua pouco se importava com o que tinha acontecido, enquanto a outra questionava e buscava lembranças concretas dos acontecimentos da noite anterior.

4 comentários:

Anônimo disse...

dér, tá muito bom esse texto! parabéns!
e os textos do blog tao bem condizentes a vibe flaneur!


meu primeiro comentario!! beijos

Anônimo disse...

Comentário da Ferrr finalmente!!!

Anônimo disse...

Belo texto, André! Duas construções geniais: “A escuridão repleta de focos de existência lhe trazia serenidade” e “o fluxo das coisas parece diferente quando se conversa caminhando”. Gosto muito de caminhar conversando com alguém. Ao fazê-lo numa noite (de verão, principalmente), pode-se também contemplar um pouquinho do maravilhoso universo que nos cerca, através das janelas acesas, numa multitude de “luzes e vivências”. Quantas vidas, quanta gente na luta, errando e acertando como nós, buscando algo melhor? Saber que não estamos sozinhos, sem dúvida, traz um pouco de serenidade. Parabéns!

Anônimo disse...

Os elogios de um homem de palavras sábias também me trazem serenidade.
Vlw yatyr!!!
Abraços