domingo, 31 de maio de 2009

América

Em um quarto poeirento e escuro, as prateleiras conservavam a história do jazz em vinis organizados por ordem alfabética. Planando entre os muitos discos estava James O’Shea, comerciante em um bairro velho de New York. Sua loja faturava um bom dinheiro fornecendo utensílios para os velhos moradores da região. Jim passava meses decorando solos de Coltrane ou Coleman, divagando sobre as possibilidades sonoras de uma gig agitada e um duelo de sax entre os dois. Nas horas vagas, Jim fazia pequenos bicos pela cidade, como consertar encanamentos de viúvas e solteironas na beira dos 40 ou trocar a parte elétrica de apartamentos que ninguém entendia como ainda estavam ativados. Mas o bico que mais interessava Jim e que mais lhe despertava dedicação era a função de locutor de uma rádio pirata que transmitia ilegalmente as partidas de beisebol das ligas menores. As perambulações pelas ruas sujas cheias de papel e hidrantes quebrados jogando água para todos os lados com crianças brincando a sua volta lhe traziam serenidade por saber que a América era sua vida. Vivia no oeste e abençoava John Wayne, James Dean, a Broadway, a torta de maçã, o Hot Dog, a dinamicidade. Flutuava em jazz. Citava Hemingway e Fitzgerald aos íntimos que lhe ofereciam uma cerveja gelada nos bares próximos ao seu bairro.”The west is the best” disse Jim. Sua casa era um cômodo seguido de um banheiro defronte a uma cozinha que servia de deposito para seus livros e quadrinhos de Flash Gordon, Jesse James e Batman. Os flocos de poeira flutuavam claramente pelo ar quando eram observados contra a luz. Era uma casa de um aficcionado, cheio de hábitos complexos em sua vida solitária e estimulante. Beirava os 50, mas ainda ligava para sua velha mãe quando sentia seu nariz escorrendo. Seus amigos eram os clássicos críticos do american dream e claramente pessoas que circulavam pela cena marginal de uma cidade grande. Típicos indivíduos que apareceriam nos noticiários diários como fracassados ou famosos loosers que não sabiam aproveitar as oportunidades de um trabalho que podia levá-los a felicidade material. Assim como faziam os yuppies de Wall Street.

Em uma poltrona, Jim sentou-se para desfrutar a beleza da fumaça que saia de seu cachimbo repleto de tabaco irlandês. Irlandês como seus ancestrais beberrões da velha Dublin. Era uma noite de chuva e ele ouvia Miles enquanto observava da janela de seu apartamento os riscos de água contra as luzes dos postes. Lá embaixo passavam homens com seus casacos e seus cigarros na boca, andando em passo apressado rumo a seu objetivo, com olhos firmes, fixos, um pensamento na cabeça e fumaça nos pulmões. Naquela noite Jim bebia vinho barato do armazém controlado por Pepe em Little Italy. Tinha passado lá para visitar um amigo seu que controlava agências de apostas clandestinas em brigas de rua. Metade da garrafa tinha sido depositada em seu estômago e ele já sentia o calor característico da fermentação das uvas e sua cabeça estava leve. Enquanto isso em Manhattan as dondocas bebiam cosmopolitans e os professores de Columbia liam a New Yorker nos cafés de esquina. Jim era cerebral e gostava de acumular coisas. Os jornais de bairro estavam repletos de artigos seus sobre os jogos de beisebol dos Yankees ou resenhas sobre filmes que fazia enquanto comia sanduíches de pastrami. “Yeah!” disse ao ouvir um grito de trompete. Levantou e limpou com o dedo um feixe de poeira em cima de sua escrivaninha. Estava na Big Apple e colecionava bilhetes de metrô. Chutava pneus de táxi por pura diversão e quando ficava bêbado nos bares do harlem gritava que os Beatniks haviam sido ótimos e que os franceses eram inteligentes, porém arrogantes demais. Falou que John Ford superava Godard e os marxistas da mesa levantavam, tomando aquilo como insulto pesado. Os pints de Guinness rodavam pela mesa e no fim da noite alguns punhos voavam pelo ar tanto por causa de alcoolizados briguentos como por discussões com os garçons, já que não havia dinheiro para pagar a cerveja preta, apenas algumas moedas de cents circulavam pela mesa e homens barbudos saiam de mansinho para escapar da conta. James era confirmadamente um entusiasta pessimista e estava feliz com isso. Sua meia careca agradava algumas coroas que vasculhavam sua loja e elas o chamavam para sair e tomar cafés. Jim passava a noite com algumas delas em motéis baratos e nunca mais ligava para elas e estava pouco se fodendo quando elas o chamavam de cafajeste. Falava para si mesmo “This is a great country”. Os yellow cabs corriam pelas veias da cidade. Jim falava do preço da pasta de amendoim aos senhores que liam o jornal pelos bancos do Central Park. Um dia ele cuspiu no touro em frente à wall street porque estava bêbado de uísque escocês barato que havia tomado no gargalo com dois escritores perdidos vindos direto de Frisco e que gostavam de Frank Zappa e Allen Ginsberg. Um guarda então chutou sua bunda e ele ficou com um roxo por alguns dias. Seu próximo projeto era compilar a vida de Babe Ruth através de noticias de jornal. Ele mantinha milhares de primeiras paginas no armário de seu banheiro e sempre vasculhava os textos enquanto usava a privada. Odiava republicanos e xingava democratas com pose de liberais. Votou em Kennedy. O Vietnã era uma incógnita para ele, e se esforçava para simpatizar com hippies, apesar de gostar dos músicos que tocaram em Woodstock. Preferia o Rock and Roll de raiz, como Buddy Holly. Uma vez usou brilhantina no cabelo para ir a seu baile de formatura, primeira vez que tomou um porre colossal com ponche. Tinha uma queda pela rainha da formatura, que acabou se tornando uma mãe de família com 5 filhos e ficou gorda.

Uma vez percorreu os subúrbios e viu as casas grandes, de paredes brancas e que pareciam aquelas de propagandas de detergentes. Abismado, voltou correndo e assistiu uma maratona de filmes pornôs nos cinemas do centro da cidade. Saiu de lá e deu de cara com as putas. Agradeceu por viver na cidade, em sua rua escura repleta de momentos gratificantes, lanchonetes com grandes vidros e sofás de couro vermelho, ruas asfaltadas e postes quebrados, becos com latões de lixo e bueiros que soltavam fumaça no frio. Chegou a seu apartamento, colocou o Duke na vitrola, sentou-se no chão e folheou as paginas de um álbum de figurinhas dos yankees que havia completado quando tinha 13 anos.