sexta-feira, 17 de outubro de 2008

"Bitches Brew" de Miles Davis: A dança dos Faraós

Inquietação. Uma boa palavra para Miles Davis.


Este semeador do processo criativo percorreu sua vida musical pela rota da inquietação. Aderindo e rompendo com linhas estilísticas por todo esse caminho, Miles produziu preciosidades instrumentais e um nível de consciência artística extraordinário e muitas vezes incompreendido pela sociedade não ciente do confronto e da movimentação. É, pura e simplesmente, um homem de vanguarda, que por todas as vertentes do jazz pelas quais passou, desde o bebop, passando pelo cool e chegando ao fusion, contribuiu com tudo que podia até um momento de ruptura e assimilação de uma nova realidade.


O desenvolvimento artístico deste rapaz de St. Louis passou por uma longa caminhada de incorporação de diversos elementos musicais, um movimento dialético que o transformou em um verdadeiro maestro e incomparável garimpador de gênios do jazz. Miles angariou boa parte dos grandes talentos da música instrumental para tocar com ele em suas muitas bandas, revelando nomes como Tony Williams, Herbie Hancock e outros. Músicos que se tornariam todos expoentes da década de 70 com suas próprias idéias, mas sempre tendo como referência o processo construído juntamente com o trompetista.


A genialidade atingiu uma apoteose em 1969, com o lançamento do disco duplo "Bitches Brew". Construído por uma banda de músicos fenomenais, o álbum surgiu como uma das maiores inovações da história do jazz, especialmente por produzir o som com duas baterias, dois baixos (um acústico e um elétrico), congas, percussão diversa, cuicas, guitarra, sopros, órgão, dois pianos elétricos e lógico, o trompete de Miles. Representa um acumulado repleto de cenas, violência, amor, criação, pessoas e coletivo.


Logo no início os instrumentos conversam: baterias e baixos na retaguarda, enquanto teclados e órgão interagem com a guitarra do inspirado John McLaughlin, mesclando frases. De fundo, um grave poderoso, com Bennie Maupin tocando um "Bass clarinet". Conforme o andamento da música, percebemos que todos da banda parecem seguir seus instintos comunicativos e a sessão flui continuamente como uma festa. A entrada do improviso de Miles é colossal, um agudo que se assemelha a um grito por liberdade de todos os padrões existentes no jazz: o encaixe das notas, vibratos e fraseados com a cozinha (baixos e baterias) e os teclados é simplesmente perfeito.


Logo em seguida, enquanto os bateristas Jack DeJohnette e Lenny White e os baixistas Dave Holland e Harvey Brooks seguram o groove, Maupin começa seu solo nos graves, quebrando o som agudo e estridente de Miles. McLaughlin fraseia continua e virtuosamente no fundo, enquanto a percussão de Don Alias e Jumma Santos fornece um ritmo africano ao andamento.


O começo do disco é como uma vibração que baixou sobre os músicos e os levou na empreitada do improviso, proporcionando um verdadeiro debate. Os solos de Miles apresentam-se com uma sensibilidade incrível, e a capacidade de fazer uma combinação de notas encaixadas em um contexto que necessita delas. No sax soprano, Wayne Shorter faz solos desconcertantes, que progridem do grave ao agudo em alguns segundos, proporcionando um sobe e desce no fraseado.


A grande sabedoria de solar está em como trabalhar com os silêncios, como configurá-los com os sons diversos. E é através do domínio desta técnica que "Bitches Brew" figura como uma obra prima.


A banda está a todo vapor, e a música toma uma proporção que parece indicar que tudo caminha sozinho em um outro plano de entendimento. Acordes soltos e distorcidos de guitarra pulam frente aos ouvidos. As duas baterias e os dois baixos proporcionam combinações e encaixes, e os teclados (Joe Zawinul, Chick Corea e Larry Young) completam o serviço de "carregar" a música em uma interação fabulosa, que enxerga "brechas" onde podem ser colocados acordes e notas. Metais e congas aparecem aos poucos, agregando-se ao amontoado da levada musical. A composição possibilita o aguçamento perceptivo: a diversidade de instrumentos é enorme, e no entanto nos permite enxergá-los todos em suas funções específicas.


Os tempos do disco são peculiares e a variedade de sons faz enxergar cores. A interação entre graves (baixos e bass clarinet) é perfeita, juntamente com o surgimento de McLaughlin através de seus acordes dispersos, "ghost notes" e frases virtuosas e o entedimento magnífico entre DeJohnette e White. Miles é o cume da composição: quando tudo caminha tranquilo, ele entra, parecendo alguém falando alto em uma conversa de bar e dando argumentos excelentes que fazem todos prestarem atenção.


O grande trunfo do disco é a conexão. Todos estão cientes do que está acontecendo e se ouvirmos atentamente, percebemos a voz de Miles ao fundo no estúdio aparecendo as vezes para reger a grande sinfonia da improvisação. É esta sensibilidade extrema que dá a noção a todos de quando devem tocar mais alto ou mais baixo, um "feeling" que parece atingir a banda inteira ao mesmo tempo e igualmente, difundindo a sensação de quando devem diminuir a pegada para deixar o solista se expressar, falar suas idéias. Chegamos então na expressão que resume "Bitches Brew": sincronicidade das almas. Os eventuais retornos ao tema da música quebram o andamento e a sincronia da improvisação, e a partir disso nasce um outro desenvolvimento de combinações, com novas possibilidades construtivas. É uma energia musical que promove o entendimento.


Miles Davis age como um mago que aponta para os instrumentistas e indica o que devem fazer, como e quando. Dessa maneira, ele promove o andamento ideal para que seus solos quebrem qualquer expectativa, preconceito e idéias passadas.


Através deste encontro único da improvisação jazzistica com a música elétrica, surge uma mescla de sonoridades diversas e um corpo musical consistente, mas que também quebra todos os padrões que já haviam existido. Trata-se, realmente, de algo singular, uma música que se retroalimenta, fornece as bases de seu desenvolvimento no decorrer do próprio desenvolvimento.


"Bitches Brew" representa a junção da importância do solista com a importância do conjunto, provando que o todo não é a soma das partes. O disco não é uma soma de faixas, é uma obra. Existe uma vibração maior que entra no processo, puxando as funções de cada músico e ligando-as, proporcionando uma apoteose de sons. O som é um túnel sem fim, uma caminhada sem paradas, um círculo psicodélico de cores e estímulos sinestésicos: você flutua por esse túnel, despreocupado com começo e fim, pois esta música te faz entender a noção de processo e de como coisas (solos, frases, batidas, etc.) nascem, morrem e se recombinam em um andamento perpétuo enquanto dura. Trata-se de uma obra dedicada ao caos da existência humana com seus eventuais padrões, possibilitando surpresas e a quebra da rotina.


Miles e sua banda abrem as portas da percepção para produzir este álbum, conversando com seus sonhos no decorrer da música e permitindo a manifestação de seus subconscientes. De todos os lados percebemos estímulos auditivos intensos, com as vozes dos instrumentos saltando, e a criação de "moods" nunca antes experimentados, em uma (con)fusão de ritmos diversos: jazz, rock, a batida característica da música negra e a percussão de origem africana.


Temos discos estupendos nas fases pré e pós "Bitches Brew", como "Filles de Kilimanjaro", "In a Silent Way", "Miles in the Sky", "Kind of Blue", "Live Evil" e "A Tribute to Jack Johnson", mas que não tem a mesma propriedade. A obra figura como o grande expoente da genialidade de um mestre em toda a sua carreira. É, por definição, uma viagem sensorial.


"Bitches Brew" (1969)

Disco 1:
1-Pharaoh's Dance 20:05
2-Bitches Brew 26:58

Disco 2:
1-Spanish Key 17:32
2-John McLaughlin 4:22
3-Miles Runs The Voodoo Down 14:01
4-Sanctuary 10:56
5-Feio 11:49